Às vésperas de um novo ano, somos empurrados a promessas, metas e expectativas. Mas talvez 2026 não precise de mais controle. Talvez precise, antes, de um princípio silencioso — algo que organize o olhar antes de organizar a vida.
A gratidão, quando bem compreendida, não é emoção passageira nem obrigação religiosa. Ela não muda Deus. Ela organiza o ser humano.
Existe um equívoco recorrente no campo religioso: a ideia de que Deus precisa ser agradecido, como se dependesse do reconhecimento humano para permanecer pleno. Essa noção não se sustenta.
A tradição espiritual no Islamismo (Surata 31:12) é clara: quem agradece, agradece em benefício próprio. Deus é pleno, autossuficiente, digno de louvor independentemente da resposta humana. O agradecimento não acrescenta nada ao divino — transforma quem agradece.
Deus não entra em carência por falta de louvor.
Não se altera.
Não se empobrece.
A gratidão, portanto, não é um favor prestado a Deus. É um cuidado com a consciência humana.
Quando entendida assim, ela deixa de ser moralismo e passa a ser reorganização interior. Não nega a dor nem romantiza a realidade. Apenas reconhece que, mesmo em meio ao caos, ainda existe sustentação suficiente para manter a lucidez.
No cristianismo, a espiritualidade não retira o ser humano do mundo — ensina a habitá-lo melhor. A ação de graças não alimenta Deus; educa o coração humano, libertando-o da murmuração, do ressentimento e da ilusão de controle absoluto. A graça já existe. Agradecer é reconhecê-la.
O estoicismo chega à mesma conclusão: não são os fatos que perturbam, mas os juízos. A gratidão reorganiza o julgamento. Ela desloca o foco do que falta para o que sustenta, da ameaça para a suficiência possível. Não é emoção. É lucidez treinada.
A psicologia moderna apenas confirmou isso: a gratidão reduz ansiedade, diminui a ruminação e fortalece a resiliência porque reorganiza a percepção. A mente humana não foi feita para habitar permanentemente a lógica da escassez.
A ingratidão não fere o Sagrado.
Não diminui o Absoluto.
Ela fere quem a pratica.
Ao agradecer, o ser humano não alimenta Deus — protege a si mesmo. Deus permanece pleno. O homem, ao agradecer, torna-se menos fragmentado.
Talvez por isso a gratidão atravesse religiões, filosofias e culturas não como imposição divina, mas como necessidade humana fundamental.
Feliz Ano Novo!
Pedro H. Curvelo

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