Na Idade Média, os bobos da corte eram personagens curiosos. Vestiam-se
de forma ridícula, usavam sinos no chapéu e andavam entre reis e nobres dizendo
o que ninguém mais podia dizer. Com uma piada, zombavam do monarca, da rainha,
da guerra e da fome — e saíam vivos. Mais que entretenimento, eram uma espécie
de válvula de escape simbólica do poder.
Mas por que
os reis permitiam isso?
Porque sabiam
que o riso tem um efeito pacificador. Enquanto o povo estivesse rindo, não
estaria se rebelando. A piada desarma. Humaniza. E no fim das contas, o bobo,
mesmo zombando do rei, era sustentado por ele. A ousadia era parte do
espetáculo, mas com limites sutis e bem definidos — muitas vezes invisíveis,
mas sempre presentes. A piada era uma uma espécie de licença poética. Diferente
se fosse algo organizado e formal.
Um exemplo
emblemático é o do rei Francisco I da França, no século XVI, que mantinha em
sua corte o célebre bobo Triboulet. Triboulet fazia piadas que beiravam
o insulto, inclusive com a própria majestade. Conta-se que certa vez
ofendeu gravemente um nobre poderoso, e o rei, irritado, prometeu que ele seria
executado. Mas, como forma de clemência, permitiu que o bobo escolhesse a
maneira como queria morrer. Triboulet respondeu:
“Morrerei de
velhice, Majestade.”
Francisco riu
tanto que o perdoou.
Rir do poder
era permitido, desde que o poder ainda estivesse no controle do riso.
Corta para
2025.
O humor no
banco dos réus
O comediante
Léo Lins foi recentemente condenado pela Justiça Federal por uma piada
considerada capacitista. A juíza Gabriela Serra Siqueira argumentou que a fala
dele “não estava protegida pela liberdade de expressão”, pois teria
ultrapassado o campo do humor e se tornado ofensa real. Com base na legislação
que pune discursos discriminatórios, a decisão causou polêmica, elogios e
indignações em diferentes campos da sociedade.
Mas a
condenação levantou uma questão mais ampla: piadas têm licença poética?
Ou, em outras
palavras: o que separa o humor do crime? E quem está autorizado a fazer essa
separação?
Historicamente,
o humor sempre caminhou na linha tênue entre o aceitável e o ofensivo. É por
natureza transgressor. O riso nasce do inesperado, do absurdo, do exagero — e,
muitas vezes, do desconforto. Não existe humor sem risco. E por
isso, quando a justiça entra no palco para decidir o que é ou não engraçado,
algo se perde. Talvez não o direito do ofendido — que deve ser respeitado —,
mas a liberdade de incomodar.
Se os reis
medievais toleravam (e alguns patrocinavam) piadas sobre si mesmos, mesmo em
regimes autoritários, por que democracias modernas parecem mais sensíveis a
certos temas? Por que o comediante de hoje é punido por chocar, enquanto o bobo
da corte era celebrado por fazer o mesmo?
A piada
que ninguém quer ouvir
Entre tantas
polêmicas sobre os limites do riso, há um tema que raramente vira piada: o
roubo do INSS, por exemplo. A tragédia silenciosa de milhões de brasileiros que
pagam tributos por décadas e se aposentam com valores miseráveis, enquanto
verbas públicas somem em esquemas escusos que raramente resultam em prisão ou
devolução de dinheiro.
Será que a
maior piada de mau gosto não é essa?
Será que rir
de uma deficiência é mais grave do que silenciar diante da humilhação
institucional que é envelhecer no Brasil?
Léo Lins foi
condenado por dizer o que muitos consideraram inaceitável. Mas quem será
responsabilizado pelas “piadas” que o Estado faz com a dignidade do povo? E
aqui não vou entrar na narrativa se o problema é do Governo Lula ou Bolsonaro.
A difamação do roubo a aposentados e pensionistas está acima desses governos.
A fronteira
entre o humor e o crime é real — mas ela também é política. E talvez, no fim
das contas, o que determine se uma piada será tolerada ou condenada não seja o
seu conteúdo, mas o seu alvo.
Como na corte
de Francisco I, o bobo ainda pode rir — desde que saiba até onde pode ir.
E desde que o
rei continue achando graça.
Pense nisso!
Pedro
Henrique Curvelo
Junho de 2025
2 comentários:
Você, como de costume, nos convidando a reflexões. Penso eu, que a liberdade autorizada de transgressão do(s) Bobo(s) da corte era porque zombavam de alguém privilegiado, protegido por suas regalias e o próprio poder… é mais fácil tolerar os “insultos” quando se ocupa esse lugar. Na dura realidade da vida real de meros mortais, tais insultos acompanhados de riso, são sentidos mais à flor da pele. Bjão, meu querido!
Obrigado por compartilhar seu pensamento, Karina. Entendo que para piadas “agressivas”, alguns pensem que pode ter uma “licença poética”. Por outro lado existem ofensas que, acredito eu, não tenha subjetividade. Como a roubalheira do INSS. Essa ninguém duvida que foi uma piada de mau gosto
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